Transferência de julgamento de oficiais para a Justiça Militar gera polêmica


Militares atuam na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas Fonte: Fernando Frazão/Agência Brasil

O Senado aprovou na última terça-feira (10) o Projeto de Lei da Câmara 44, de 2016, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de crimes intencionais (dolosos) cometidos por oficiais das Forças Armadas contra civis em algumas situações. A matéria, que ainda precisa ser sancionada pelo presidente Michel Temer para ter validade, gerou reações positivas de militares e críticas de organizações da sociedade civil e do Ministério Público Federal.

Pelo texto, passariam a ser julgados na Justiça Militar casos em que os militares tenham cometido os crimes durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), no cumprimento de atribuições estabelecidas pelo presidente ou pelo ministro da Defesa, em ações que envolvam a segurança de instituição militar ou em operação de paz.

O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, comemorou a votação do projeto em sua conta do microblog Twitter. “Agradeço a aprovação do PLC 44, que garantirá a segurança jurídica de meus comandados quando em operações de Garantia da Lei e da Ordem”. O comandante já vinha se manifestando pela aprovação do projeto.

Veto

O Conselho Nacional de Diretos Humanos (CNDH) enviou ofício na quarta-feira (11) ao presidente Michel Temer solicitando veto integral à proposta. Segundo o colegiado, o projeto “atenta contra o Estado Democrático de Direito” e “pode resultar em um estímulo a práticas de execuções extrajudiciais no âmbito da atuação dos militares”. Essa preocupação se dá no momento em que tropas estão sendo utilizadas para reforço de policiamento em diversas regiões na cidade do Rio de Janeiro.

O CNDH já havia se posicionado contrariamente ao texto em nota publicada em agosto. “Os tribunais militares são compostos, majoritariamente, por militares da ativa, subordinados às altas patentes. Assim, dada a sua composição e organização, a Justiça Militar não é isenta para processar os crimes graves praticados por militares contra civis”, criticou o colegiado.

Constitucionalidade

Caso haja a sanção pelo presidente Temer, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) deve enviar à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, parecer solicitando o questionamento da constitucionalidade do texto junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). “O entendimento histórico do Supremo é que a competência da Justiça Militar está restrita a crimes tipicamente militares, na caserna. O projeto estende para crimes ocorridos no exercício ostensivo e o Supremo entende que essa é uma atividade de segurança pública”, defende a titular da PFDC, Deborah Duprat.

Ainda de acordo com a procuradora, este entendimento está consolidado internacionalmente. “Há várias jurisprudências da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do sistema europeu e internacional de direitos humanos sobre a excepcionalidade da Justiça Militar em tempos de paz. Ela é vista quase como justiça de exceção”, explica.

Segundo Everaldo Patriota, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o projeto seria inconstitucional por afrontar uma garantia prevista no Artigo 5º da Carta Magna. “O artigo diz que ‘é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurada a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida’. Quem julga crime doloso até que se rasgue essa Constituição é o tribunal do júri. É inconstitucional, é um retrocesso e é uma sinalização terrível para o momento que vivemos de violência policial”, destaca.

Retrocesso

A Anistia Internacional divulgou nota afirmando que o projeto iguala a legislação às normas do regime militar e prejudica a realização de julgamentos imparciais. “A atuação crescente das Forças Armadas no policiamento com a garantia de que as violações cometidas pelos militares serão tratadas em ‘foro privilegiado’ pode estimular as práticas de execuções extrajudiciais já tão comuns nas favelas e periferias brasileiras”, defende Renata Neder, coordenadora de pesquisa e políticas da organização.

Segundo a entidade, o principal local com atuação das Forças Armadas em operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO), a cidade do Rio de Janeiro, não teve redução de índices de violência com o reforço. Em contrapartida, afirma a organização, em 2007 uma operação com apoio do Exército no Morro do Alemão resultou em 19 mortes, “algumas com forte evidência de execuções extrajudiciais, de acordo com especialistas independentes”. Em dezembro de 2011, acrescenta a entidade, em uma nova ação a morte de um adolescente teria tido o envolvimento de oito militares.

STM

Para o Superior Tribunal Militar (STM), a aprovação do projeto devolve à Justiça Militar da União “uma competência há muito prevista em legislação específica”. De acordo com o tribunal, o Código Penal Militar, de 1969, previa que os casos deveriam ficar sob responsabilidade da Justiça Militar. A mudança ocorreu em 1996 quando a Lei 9.299 determinou que os citados crimes seriam da competência da Justiça Comum, mais especificamente do Tribunal do Júri. “A alteração trazida pela referida Lei se originou do clamor popular em razão de constantes notícias de lesões corporais e homicídios praticados por policiais militares (julgados pela Justiça Militar Estadual) contra civis na década de 1990, tais como nos casos da Favela Naval (SP), Eldorado dos Carajás (PA), Candelária e Vigário Geral (ambos no Rio de Janeiro)”, diz a assessoria do STM.

Na avaliação do STM, os militares não agem como cidadãos, porém como representantes do Estado, e por isso crimes cometidos nessas situações devem ser julgados por uma juízes especializados, assim como ocorre com a Justiças trabalhista e eleitoral. “Os militares das Forças Armadas que estão a serviço do Estado têm que ter a garantia de que serão julgados por juízes isentos, especialistas, que entendem e conhecem as nuances deste tipo de operação. Dessa forma, poderão exercer suas atribuições com maior segurança, visando a garantia da lei e da ordem, e, consequentemente, da paz social”, diz.

Agência Brasil